AMAZÔNIA, ESSA "NOSSA" DESCONHECIDA
Ney Iared Reynaldo
Francielle Rodrigues Iared
O estudo das fronteiras físicas, políticas ou mesmo culturais constituem, ainda num enigma para os especialistas na complexa 'teia de relações' que envolvem as sociedades interdependentes. Como o misterioso oceano mar-tenebroso (Atlântico), assim de outrora aparecia ao olhar de seus navegadores como um segredo a ser revelado, assim é a Amazônia de hoje da qual, ainda remanesce envolvida por véus de desconhecimentos, ambigüidades e equívocos. O Atlântico, por sua vez na segunda metade do século vinte tornou-se sinônimo de alianças estratégicas, de preferências comerciais e de associações políticas. O complexo amazônico de hoje, "oceano verde", se fez objeto de um esforço ímpar de construção identidaria, de relevância na organização do espaço-social dos Estados e de sua localização no cenário internacional de interesses e de poder. Política e economia, ciência e comércio disputam a interpretação e a definição do que é 'Amazônia na atualidade'.
Estados e ordens jurídicas prevalecem na delimitação de espaços, sentidos e finalidades. Diga-se de passagem que a fronteira a ser abordada no presente se configura preferencialmente em seu significado territorial. Ela é vista como expressão da dinâmica que imprime a ocupação de um determinado território por distintas sociedades. Com o conceito de fronteira, busca-se compreender, por um lado, a construção histórico-econômica de um espaço e, de outro, as relações que se estabelecem entre as sociedades que disputam e, ao mesmo tempo, compartilham esse espaço.
Sendo assim, essa noção indica algo mais do que a simples demarcação de um limite territorial. É na verdade, um espaço geográfico, onde Estados e sociedades estão incorporando/disputando territórios e onde se estão imprimindo processos sociais e organização institucional, os quais pressupõem a vinculação dinâmica de sociedades distintas, área de contato de formações sociais diversas.
Ao tratarmos de um espaço como a região amazônica, em que historicamente se fazem presentes disputas ou tensões, defendemos que nele, concomitantemente, se processam intercâmbios comerciais, sociais e culturais, o que permite concluir que os dois tipos de fronteira identificados, ali, não são excludentes. Rivalidades regionais e supra-regionais se entrechocam, embalados entre os discursos da proteção à biodiversidade e o egoísmo prosaico de preservar recursos para sua própria sobrevivência em um mundo no qual a globalização ainda não produziu solidariedade suficiente para além das unanimidades retóricas.
A conformação dos espaços por processos materiais e imateriais representa, assim, um fator de transformação social e institucional, a ponto de requer uma verdadeira revolução conceitual e política. Para essa transformação, a perspectiva tradicional das soberanias nacionais, mesmo que ainda necessária, é insuficiente. Ao longo do período que se desenvolve desde o século XVIII, quando os impérios coloniais luso e castelhanos definiram suas linhas de partilha nas Américas, o espaço amazônico se constituiu no que fazer? Substancial parte desse questionamento subsistiu até a segunda metade do século passado. Foram anos de preocupação dos Estados em apropriar-se dos denominados “grandes espaços vazios” e ocupá-los. A categoria como “vazio” aponta com nitidez para a referência “civilizatória” no paradigma colonial (e, depois, nacional) de que os espaços não assinalados pela cultura européia ou por sua versão nacional americana, seja brasileira, venezuelana, colombiana, equatoriana, peruana ou outra da imensidão amazônica careciam de ser “preenchidos”. A consciência de que não se trata apenas de espaços vazios e de que sua realidade é mais densa do que a reprodução dos paradigmas culturais e políticos da matriz euro-americana somente ganha terreno e se desenvolve a partir dos anos de 1970. Esse pequeno ensaio levanta uma ponta do icenberg que ainda encobre o complexo jogo internacional em que a Amazônia é um trunfo.
O espaço político e cultural em que se constroem as representações históricas do espaço amazônico tão atuantes no início do século XXI, ainda, constitui objeto de reflexão. Forçosamente sua abordagem em relações internacionais tem de levar em consideração um dado empírico preciso: os territórios estão definidos por fronteiras geopolíticas de Estados, embora a Amazônia se estenda para além e, por cima de tais linhas imaginárias e representativas, transformadas em marcos físicos.
Assim, a questão das fronteiras no complexo amazônico e a construção de uma unidade sul-americana, forma uma dialética entre o histórico da cristalização estatal da ocupação territorial e o projeto político de unidade regional. Na diversidade política da Amazônia contemporânea, aproximações e distanciamentos são temas que se impõem à agenda internacional, sobretudo, quando se refere a questão da rivalidade estatal, assim como de seu equacionamento de tais rivalidades, como estratégia de sobrevivência coletiva das sociedades no mundo contemporâneo.
Cabe aqui destacarmos dois temas transnacionais de revelante importância, tais como: a diversidade ecológico-social e a complexa teia produzida pela evolução histórica e pela gestão política é uma constatação verossímel nos estudos de macro-regiões. Fatores que se entrecruzam precisam ser analiticamente distinguidos, tanto na perspectiva da longa duração quanto na de curta, segundo o pensamento de Fernand Braudel.
No conjunto contribui notavelmente para oferecer roteiros de reflexões críticas seguindo três caminhos. No primeiro, à relevância da Amazônia como grandeza na equação da busca contemporânea de integração supranacional na América do Sul e seus desdobramentos para o espaço caribenho. Já, na segunda refere-se ao caráter estratégico e vital da Amazônia na trama da sobrevivência da sociedade humana sob as condições adversas do período pósindustrialização.
E, finalmente, a terceira, está relacionada com a consolidação de uma tradição acadêmica: a da constituição e desenvolvimento de um núcleo de pesquisa acadêmica de qualidade numa universidade de fronteira. A leitura deste permitirá ao interessado nas questões políticas, econômicas, ecológicas, internacionais, culturais e históricas da Amazônia e de sua porção setentrional sulamericano, alcança um quadro de referências atualizado e, no melhor dos sentidos, provocador. Reforça-se o entendimento de como a questão da fronteira e de seus efeitos sobre a organização espacial, social, política e econômica das sociedades tornou-se um tema incontornável nas ciências sociais, desde o trabalho de Frederick Jackson Turner sobre a expansão territorial dos EUA ao longo do século XIX.
Nessa perspectiva, a fronteira é vista como linha imaginária de apossamento que se estende indefinidamente, dentro de cujos limites o território e suas populações são agregados à matriz em expansão, sem levar em conta a especificidade cultural que eventualmente possuam. Diversamente, a análise crítica do presente volume não deixa escapar ao crivo a diversidade social e cultural do espaço amazônico, a realidade político-institucional contemporânea e sua dimensão econômica de nossos dias.
A fronteira, portanto, tradicionalmente pensada como limite-político de distinção não raro chegando ao parodoxismo da linha de conflito e de confronto, ganha em ser pensada também como traço de união. Essas duas acepções são próprias de épocas distintas. Assim, considerá-la como traço de união, significa rever suas rupturas e o conflito presentes por longos séculos anteriores, notadamente desde o período da expansão marítima e das descobertas ultramarinas. Ajuda a entender porque para muitas relações sociais, lugares, distâncias e fronteiras tão longe de ser decisivos.
⃰ Ney Iared Reynaldo, doutor em História da América e docente Adjunto do Departamento de História e da Ciências Econômicas/ICHS/CUR/UFMT.
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